domingo, 30 de maio de 2010

"se nada mais der certo leia clarice"

Hoje tive uma lembrança muito feliz a respeito do primeiro livro da Clarice Lispector que eu li. Tinha por volta dos 16 anos, talvez não entendesse muito bem algumas coisas (como continuo não entendendo, lógico), mas foi uma leitura visceral e, obviamente, inesquecível. 
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Eu deveria ter imaginado que essa história me acrescentaria algo. Bem, eu me apaixonei por Clarice (assim, íntima mesmo) desde então. Tenha certeza: qualquer identificação é mera coincidência...

“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra pra frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.” 


Ps.: O título do post é de um conto do José Eduardo Agualusa, escritor angolano.



sábado, 8 de maio de 2010

cocô



        "A psicanálise estava errada. É na vida adulta que a gente precisa aprender a dar tchau pros cocôs."


Sejamos realistas: muita gente ri, conta piada, fala... mas no fundo todo mundo tem suas arestas quando o assunto é merda. Merda, cocô, escatologia, no geral. Tabu? Vergonha? Por que? Qualquer pessoa normal vai ao banheiro. Qual a dificuldade disso? Bem, o fato de eu estar falando a respeito não é nenhuma revolta, é mais uma necessidade de entender mesmo.
Alguém já sonhou com fezes? Eu já. Tive sonhos recorrentes e não foi agradável. Então, enquanto pessoa psicanalisada (HAHAHA), resolvi refletir e pesquisar sobre o tema, e, quem sabe, compreender melhor essa história.
Os sonhos se baseavam mais ou menos na seguinte cena: Ev, apertada, chega ao banheiro, olha o vaso sanitário e este está absurdamente entupido (até não poder mais) de cocô. Muito a contra gosto (porque a merda não era dela), Ev tenta limpar a zona, puxar a descarga, mas a porcaria não desce. O sonho seguinte não fica melhor. Além das fezes na privada, há também na pia, e mais uma vez Ev tenta dar um jeito da situação, sem muito êxito. No terceiro sonho o negócio fica ainda mais tenso, a coisa começa a vazar e fugir do controle, causando assim, um certo desespero, sensação de "preciso sair daqui! para onde eu vou?". Daí para frente só piora.
Desagradável, não é? Imagina sonhar com isso. Mas, pensem bem: o que são as fezes, se não o resto não aproveitado do que nós ingerimos? Aquilo que precisamos colocar para fora. Todos defecam. Só que é horrível pensar que mantivemos dentro de nós aquilo que é o resto, que fede, que é feio, que ninguém precisa saber que está dentro de nós, o que temos de mais íntimo. 
Tratei de ir procurar saber o que pensavam a respeito e achei Freud (foi bem divertido, não canso de me surpreender com os estudos dele e rir, claro). Uma das coisas que li foi sobre o cocô ser a primeira forma de comunicação do bebê. Impressionante isso. É a primeira "coisa" que a criança divide com aquela que é a pessoa mais próxima dele, ou seja, é quando ele percebe que aquilo, de alguma forma, chama a atenção e faz com que a mãe se aproxime, e 'fale' com ele. 
Então o cocô é algo que está dentro dele, que não serve mais, e que ao colocar para fora, como resultado, ganha interação. Resumindo: é uma conversa! Uma forma possível de diálogo. Tentei usar isso para entender meus sonhos. Pensei sobre o que está acontecendo na minha vida atualmente e acho que consegui fazer uma boa análise. 
Todos os caminhos me levam a crer que preciso resolver certos problemas de comunicação. Quando sonho com o banheiro da minha casa, imagino que já signifique muita coisa. Por que não consigo descartar todo aquele lixo (emocional?)? Quanto mais o tempo passa, mais a merda aumenta e a dificuldade também. Não é a toa o desespero! Algo está transbordando e que está complicado de esconder. Não seria novidade se este vazamento de merda estivesse atrapalhando minha vida, impedindo minhas escolhas e inibindo minha movimentação. 
Vale lembrar que estava tentando consertar -inutilmente- a merda alheia. O que, obviamente, fazia com que não tivesse espaço para a minha própria merda. Qualquer semelhança com a minha vida, não é mera coincidência...
Imagino que meu inconsciente esteja tentando me alertar a respeito de algo essencial. O que significa não puxar a descarga? Por que eu tento limpar e não adianta? É porque eu tento sozinha ou por que não sou que tenho que fazer isso? Será que eu não consigo me separar disso? Quais são obstáculos a serem ultrapassados? 
Uma coisa é certa: é necessário evacuar o que não serve, o que está ocupando o espaço que deveria ser de algo de que eu realmente precise. Mas, enfim, depois de muito refletir, concluí que anda se mostrando indispensável uma limpeza emocional... e que eu devia agradecer por não ter prisão de ventre...   



sexta-feira, 7 de maio de 2010

estilo


— Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?


in Os Passos em Volta - Estilo, Herberto Helder

domingo, 2 de maio de 2010

o proibido

AMORES IMPOSSÍVEIS

"Desculpem o trocadilho infame, mas a vida é feita de altos e baixos. Altos, fortes, morenos, sensuais, possíveis e aquele baixinho, meio esquisito, que não sai da sua cabeça.Impressionante como a gente sofre por nada. Um cheiro que mexe com você, um jeito de olhar contido, uma idéia inteligente, várias na verdade. Não, não é nada disso, a gente sofre é pela impossibilidade.
Desde que o mundo é mundo não há nada mais afrodisíaco do que a proibição.
E se a Julieta tivesse visto o Romeu acordar com mau hálito? E se o Romeu descobrisse o chulé da Julieta? Convivência é foda.
Pois é, aquele baixinho esquisito não pertence ao grupo dos amores possíveis, a graça dele pode durar uma eternidade, dependendo do seu grau de estupidez criativa.
Ele não quer nada com você, já tem alguém, pertence a um caminho que passa longe do seu, sabe cumé? Pertence ao campo dos idealizados, sonhados e distantes, o que faz dele enorme, lá no pedestal.
E nada melhor do que as lacunas da improbabilidade para esquentar uma paixão. Nessas lacunas você tem espaço para criar a história como quiser, ganha poder, inventa. Ele é seu, seu personagem.
Nesses espaços livres você coloca todos os seus sonhos, toda a sua imaginação. Cenas completas com fundo musical e palavras certas, finais e desfechos inesperados.
Quando você menos espera, ele faz mais parte da sua vida do que você mesma.
Mas a realidade aparece mais cedo mais tarde, vem como uma angústia. Parece vontade de fazer xixi, mas é tesão reprimido. Tesão reprimido deve dar câncer. Era só um cara interessante, agora pode te matar.
Pronto, você está apaixonada. E a paixão tem suas etapas.
Primeiro a negação: eu apaixonada? Imagina. Ele é impossível, nunca vai me dar bola, muito menos duas com o que eu quero no meio.
Depois a maximização: ele é mais inteligente, mais bonito, mais engraçado. E todos os mais possíveis para que ele seja mais desafio para você, mais inveja para as suas amigas, se você aparecer com ele na festa, mais fadinhas dançantes para fazer cosquinha no seu ego problemático.
Daí é a vez da "superlativização": em vez de ser mais, ele é "o mais", o mais fodido, o mais inteligente e o mais gostoso.
E você está a um passo do endeusamento: "ele é único", aí fodeu.Se ele é único, ele é a sua única chance de ser feliz. E, se ele não quer nada com você, você acaba de perder a sua única chance de ser feliz. Bem-vinda à depressão.Como você é ridícula, amor platônico é para adolescentes.
Lá fora há milhares de possibilidades de felicidade, de felicidades possíveis. De realidade. E você eternamente trancada na porta que o mundo fechou na sua cara. Fazendo questão de questionar e atentar o inexistente.                                                                    
Vá viver um grande amor.
Olha, faça um favor para mim, antes de tremer as pernas pelo inconquistável e apagar as luzes do mundo por um único brilho falso, olhe dentro de você e pergunte: estupidez, masoquismo ou medo de viver de verdade?"


TATI BERNARDI