domingo, 6 de janeiro de 2013

O mínimo


O minuto certo

Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor.
Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam putas e charros e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas, entendes? Nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade, mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.
Queria de ti um minuto. Um minuto.


Filipa Leal

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Não é inferno astral: é verdade.


Foi quando eu cheguei ao restaurante e pedi uma mesa para uma pessoa. Enquanto aguardava o atendimento, avistei os dois na porta do estabelecimento em que eu estava. Eles entraram, sentaram-se junto a outras pessoas que, coincidentemente, eu também conhecia.
Eu acenei de maneira entusiasmada e acabei criando um clima desconfortável entre eles. Ela subiu as escadas, disse que ia ao toilet. Eu observava de longe.
Por interesses e amigos em comum, fui convidada a sentar a mesa a qual ele também estava.
Ocupei a cadeira vaga ao lado dele. Era incômodo.

– Eu sei o que você está fazendo.
– Não, não sabe.
– Você quer destruir o que tenho construído.
– Não posso destruir o que não existe há tempos.
– Você não sabe o quanto as circunstâncias são complicadas.
– Eu sei. E é justamente o que te torna um convencional hipócrita.
– Você vai fazer alguma coisa?
– Só o que você não tem coragem.
– Você armou isso?
– “Para quem é fraco e covarde, tudo é armadilha”, lembra?

Fui embora deixando na cadeira vazia um bilhete escrito com uma caneta azul barata.

                                                       Não há lugar que seja nosso.

E tudo voltou a ser o que não era.




terça-feira, 1 de maio de 2012

Quem é este homem?

“— Tentei não pensar em você, sussurrou Karl. Mas sempre quando eu pensava em você, pensava em nós dois. Servindo o vinho, olhou fixamente para os olhos derretidos de Alice e, talvez querendo, como se fosse possível encontrar uma resposta, começou a perguntar:
Quem é esta mulher que me arrebata para além do meu corpo tocando até o mais desconhecido de mim mesmo? Quem é esta mulher que de homem me faz menino a procurar travessuras? Quem é esta mulher que me retira das minhas certezas atávicas e que me transforma num mar incandescente de ondas de prazer? Quem é esta mulher que me enfeitiça e me leva deliciosamente a experimentar o mais além da dor e do prazer? Quem é esta mulher que entrou na minha vida cinzenta colorindo-a por dentro e por fora?


— Vou te colorir, respondeu Alice suavemente, mas com muita firmeza. E continuou como que dando seqüência às perguntas de seu amante: Quem é este homem que me leva a passear para além dos arredores de mim mesma, que me desvirgina a alma e os sentidos? Quem é este homem que me faz tremer como se estivesse dando luz a milhões de estrelas? Quem é este homem que troveja meu céu em noite de lua cheia e me despe como um anjo e me possui como uma prostituta? Quem é este homem meio deus meio demônio que me enfeitiça só com o sorriso que escorre do canto dos seus olhos? Quem é este homem que me deixa nua de mim mesma mas ao mesmo tempo protegida, louca e atriz para seus caprichos mais sadicamente deliciosos? Quem é este homem que me faz ficar escondida de mim mesma só para ser surpreendida em meu despertar? Quem é este homem que não cessa de me fazer ter esperanças no amor, ele, que quando está perto tenho vontade de devorá-lo, mas que quando está longe é só esperança e saudade?”


CARLOS EDUARDO LEAL, in O NÓ GÓRDIO (Romance/Ficção),( Cia de Freud Editora, 2007)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

sexta-feira, 23 de março de 2012

A menina diz: Choveu hoje, então não vai chover amanhã.
Quem dera...
Chove.

É mais ou menos assim quando olho no espelho: sorrio, mas tem um buraco.




Obrigada, Clarice.

Um pouco atrasada com esse post, mas tudo bem.
O mais engraçado foi ter sonhado que batia uma papo com  Clarice Lispector no lançamento da Encontros e dizer a ela: "Não é incrível desafiar o tempo e a realidade, Clarice?" E ela responder: "É mesmo impressionante o que se pode fazer quando se tem vontade. O mundo parece impossível, mas você tem feito um bom trabalho."

Obrigada, Clarice do meu inconsciente.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"O porto sempre por achar..."

Quase sempre me impressiono com a simplicidade eficiente com que as crianças enxergam as coisas.
Estava a criatura ali, fazendo o seu check-in no guichê do aeroporto. Pensava em muitas coisas, mas principalmente na dificuldade de lidar com algumas prisões que o mundo impõe.
(É tempo de questionamento e inquietação.)

A fila anda, desperta dos pensamentos e começa a ouvir a conversa de um menino com seu pai:

- Pai, onde as aeromoças moram?
- Na casa delas.
- Mas como se elas estão sempre voando!?
- Não. Nem sempre.
- Já sei! Elas são de todos os lugares!

E tudo fez sentido.